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Palestrantes discutem o machismo no sistema de Justiça

“As mulheres vítimas de violência acabam sofrendo mais com o processo (judicial) do que com a agressão em si.” A afirmação da promotora de Justiça Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Púbico de São Paulo (MPSP), amparada em casos concretos como o da influencer Mariana Ferrer, corta na própria carne e força uma reflexão sobre o quanto o sistema de Justiça brasileiro reproduz e reforça o machismo, a discriminação e acaba por perpetuar a desigualdade de gênero no país, apesar de, segundo ela, termos as melhores leis do mundo para proteger meninas e mulheres de todos os tipos de violação de direitos.

O assunto foi discutido na tarde desta quinta-feira (3/12) no webinar “O machismo estrutural e o sistema de Justiça. Um debate necessário?”, promovido pelo Núcleo de Gênero, pela Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar de João Pessoa e pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf) do Ministério Público da Paraíba (MPPB), pela plataforma zoom, com transmissão simultânea pelo canal do Núcleo de Ensino a Distância (Nead/Ceaf) no Youtube.

O evento integra a campanha mundial pelos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher e foi destinado a membros e membras, servidores e servidores do Ministério Público, a integrantes da rede de proteção à mulher, docentes, estudantes e à comunidade em geral.

Apresentado e mediado pela promotora de Justiça que atua na defesa da mulher vítima de violência doméstica e familiar de João Pessoa e integrante do Núcleo de Gênero do MPPB, Roseane Araújo, o webinar também teve como palestrante a promotora de Justiça Érica Canuto, coordenadora do Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica (Namvid) do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) e doutora em Ciências Sociais.

Desigualdade

Em sua fala, Rosane criticou a baixa representatividade de mulheres em cargos de decisão e poder em órgãos e instituições - com destaque para o Ministério Público e o Poder Judiciário - e destacou que ainda é pequeno o número de homens igualitários nesses espaços, o que acaba por fazer com que essas instituições continuem sendo machistas e sexistas.

Defendeu ainda “não haver democracia, onde há desigualdade e discriminação” e lembrou os julgamentos históricos em que prevaleceram o preconceito e o patriarcado, como o de Olga Benário (opositora à ditadura de Getúlio Vargas, presa pelo Estado e condenada em 1936, à extradição para a Alemanha nazista, onde acabou sendo morta em um campo de concentração) e o da socialite Angela Diniz, brutalmente assassinada pelo companheiro, que chegou a ser absolvido sob alegação da defesa da honra, fazendo um paralelo com os dias atuais. “Em 2020, tivemos um caso de tentativa de feminicídio, em que o agressor foi absolvido pelo júri apesar de todas as provas contidas nos autos. O Ministério Público recorreu, pedindo que fosse feito um novo júri e o STF negou. Também tivemos o caso de Mariana Ferrer (vítima de estupro e que, em julgamento recente, foi humilhada e desrespeitada pelo advogado de defesa, com a omissão dos demais homens presentes, promotor, defensor público e juiz do caso). É preciso uma reflexão dura e ampla. Não se pode mais, em pleno século XXI, existir casos como esses”, defendeu.

A cada dois minutos, uma agressão

Em sua palestra, a promotora de Justiça do MPSP, Valéria Scarance, discutiu a reprodução da cultura do machismo no meio científico, filosófico e na mídia e apresentou dados estatísticos, segundo os quais uma a cada três mulheres já sofreu violência. De acordo com o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também apresentado por ela, em 2019, o País registrou, em média, uma agressão contra mulher a cada dois minutos. “Nós, mulheres, passamos por inúmeros episódios de desqualificação e assédio”, lamentou, lembrando que, além da violência física e “tradicional”,, as mulheres também sofrem com a violência simbólica.

A palestrante apresentou ainda dados de uma análise realizada pelo MPSP, em parceria com o Instituto Sou da Paz e a ONU (Organização das Nações Unidas), sobre as ocorrências de estupro de vulnerável no Estado de São Paulo.

Cerca de 39 mil boletins de ocorrência registrados entre 2016 a junho de 2020 foram analisados. A análise revelou um aumento de 14% no número de B.Os entre os anos de 2017 e 2018 e de 3%, entre os anos de 2018 e 2019. No entanto, no primeiro semestre de 2020, durante a pandemia da convid-19, foi registrada uma queda de 15,7% dessas ocorrências, o que pode indicar uma subnotificação dos casos. “A pesquisa reforça o que já sabemos, pelo dia a dia nas promotorias, de que 78,5% dos casos de estupro de vulnerável ocorreram em casa e que 67% das agressões são praticadas por parentes das vítimas, que em sua maioria, são meninas de até 13 anos”, acrescentou.

Para a promotora, o sistema de Justiça brasileiro acaba por reproduzir o machismo e a discriminação histórica praticados contra a mulher, vista cultural e historicamente como um “corpo, que deve ser fiel ao homem e estar à mercê da vontade dele”. Ela também criticou a desigualdade “gritante” entre vítimas e réus nos processos e disse ainda ser forte a crença no princípio da legítima defesa da honra, sobretudo nos tribunais do júri de cidades do interior do país, o que acaba por absolver os agressores.

Segundo ela, o julgamento moral de que se vale operadores do Direito (e a sociedade) para deslegitimar a mulher vítima de violência é a “face mais cruel e absurda do sistema de Justiça”. Para ela, é a revitimização extremamente presente nesse sistema que inibe as vítimas de estupro a denunciarem os agressores. “Essas mulheres não querem ter suas vidas devassadas… O caso Mariana Ferrer é só um reflexo do que acontece no sistema de Justiça. Ela não é a primeira (mulher vítima desse sistema) e não será a última. O que mostra que é preciso mudar”, defendeu.

Scarance também falou sobre mitos que reforçam o preconceito contra a mulher e o machismo no sistema de Justiça, como o de que as vítimas reagem ao estupro (segundo ela, estudos científicos revelam que a reação a essa violência é o congelamento, é o não reagir como defesa do próprio corpo); a crença nas falsas memórias (vários estudos questionam essa teoria); o mito de que se aconteceu o estupro, o laudo da perícia será positivo (segundo ela, a maioria dos laudos tem resultado negativo porque não são feitos no lapso temporal necessário ou porque há abusos praticados, principalmente contra bebês e crianças, em que não há ruptura do hímen) e o mito de que o estuprador é um monstro (quando a maioria dos agressores apresenta um perfil que não desperta suspeita).

Segundo ela, é preciso que o sistema de Justiça e seus profissionais tenham um olhar cuidadoso e sensível em relação à questão de gênero e que façam uso de parâmetros científicos, como o formulário de avaliação de risco em caso de violência doméstica contra mulheres, por exemplo. “Nós, como instituição, temos o dever de atuar de forma científica, inclusive nos processos. Apesar de estarmos em um momento crítico no País, muita coisa mudou e temos instrumentos para combater o machismo e a violência contra a mulher, mas a forma como atuamos e acolhemos essas vítimas é mais importante que uma sentença condenatória”, disse.

Machismo estrutural

Em sua palestra, a promotora de Justiça do MPRN, Érica Canuto, falou do machismo estrutural que permeia e está enraizado em nossa sociedade e nas instituições do sistema de Justiça. Segundo ela, é a naturalização do machismo que acaba por reforçar e chancelar a atuação das pessoas e das instituições e esse fenômeno só pode ser combatido através de políticas públicas afirmativas de igualdade de gênero e de educação, sobretudo nas séries iniciais de ensino.

Ela falou da importância da Lei Maria da Penha, enquanto microssistema protetivo, com princípios e valores que podem ser aplicados a qualquer caso de violação de direitos de mulheres e do papel do Ministério Público e dos seus promotores e procuradores de Justiça enquanto protetores da mulher vítima de violência.

Segundo ela, o MP deve prestar um atendimento restaurativo às vítimas, em que haja uma escuta acolhedora da mulher que sofreu violência. “Não tenha medo da empatia, seu atendimento precisa ser ousado, capaz de criar um vínculo e conquistar a confiança da vítima. Nós lidamos ainda com um paradigma de processo penal que não tem nada a ver com a Lei Maria da Penha, apesar de a Corte Interamericana ter condenado o País a simplificar esse processo”, disse.

A palestrante também discutiu os princípios previstos na Lei Maria da Penha, como o da presunção da vulnerabilidade da vítima; o princípio de que na dúvida, deve prevalecer a palavra da vítima; o princípio da responsabilidade e da integralidade dos serviços e o da responsabilização, destacando a importância dos grupos reflexivos para homens envolvidos no contexto da violência contra a mulher, uma vez que essa estratégica tem sido capaz de promover a mudança de atitude, apresentando, entre os participantes, baixo índice de reincidência de comportamentos agressivos.

 

 

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