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Internações de adolescentes em comunidades terapêuticas são ineficazes e ilegais

Não há possibilidade legal da internação hospitalar em comunidade terapêutica, muito menos de adolescentes. O assunto importante e polêmico foi discutido durante um webinário, na tarde dessa terça-feira (01/09), realizado pelo Ministério Público da Paraíba, através do Núcleo de Políticas Públicas (NPPB) e do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf). Membros do MP e profissionais da área de saúde mental também pontuaram que não há estudos que provem a eficácia das internações a longo prazo e, em se tratando de adolescentes, deve ser observado o direito à liberdade e a convivência comunitária e familiar, inclusive, como parte do tratamento. A orientação é que promotores de Justiça que atuam na área promovam mais fiscalizações a essas instituições e que, ao identificarem adolescentes, os retirem do confinamento, pois essa “solução mágica” é mais simples para uma sociedade que não sabe resolver um problema complexo, mas produz mais danos. Também haverá o cadastramento das unidades do Estado.

O evento com o tema "Internações involuntárias de adolescentes em comunidades terapêuticas: uma abordagem interinstitucional à luz do ECA (Estatuto da Criança e do adolescente) e da CF (Constituição Federal)” foi aberto pelo procurador de Justiça do MPPB e coordenador do NPP, Valberto Cosme de Lira. Ele saudou os palestrantes e os participantes, agradeceu aos convidados e destacou a oportunidade de se discutir a temática. Também ressaltou que adolescentes com dependência química, por exemplo, estão sendo confinados em vez de tratados, piorando suas condições. Ele pontuou que os integrantes do Sistema de Justiça, (Ministério Público, Judiciário e Defensoria Pública e advogados), muitas vezes, só enxergam a internação  como alternativa e alertou ao perigo da adoção de formas antigas e maléficas para tratar pessoas, como choques elétricos, castigos e prisões.

“Nossos colegas com expertise na área com certeza nos trarão novas orientações, rumos e perspectivas para que possamos mudar essa situação", disse Valberto Lira. Ao final do evento, ele informou que as unidades serão cadastradas e inspecionadas. "Hoje, o funcionamento das comunidades terapêuticas é uma verdadeira caixa preta. O Núcleo de Políticas Públicas, a Coordenação Estadual de Saúde Mental da Secretaria  de Estado da Saúde e vários outros parceiros, a exemplo dos conselhos regionais de Psicologia, Serviço Social, da Assistência Social e da Criança e do Adolescente estão juntos nessa missão. Nossa Diretoria de Tecnologia da Informação está concluindo um formulário eletrônico para o cadastramento online e, tão logo seja permitido pelas autoridades sanitárias, voltaremos às visitas presenciais", disse o coordenador do NPP/MPPB.

Confinamento causa dano maior 

O médico psiquiatra Marcos Creder disse que o tema é atual, importante, polêmico e sofrível do ponto de vista da assistência. Ele pontuou que a saúde mental é um grande problema contemporâneo e, em se tratando de adolescentes com dependência química a coisa toma uma proporção ainda maior. O especialista fez uma introdução sobre como a relação da sociedade com as drogas psicoativas no passado, quando circulavam livremente e até eram incentivadas, e como, à medida que os problemas decorrentes do seu uso abusivo (decorrentes da industrialização, tecnologias e disponibilidade) foram aparecendo e sendo constatados em estudos, elas foram sendo banidas e proibidas. O médico, então, observou que a sociedade não trata o dependente adequadamente. “Não estamos tratando, apenas confinando e não tomando nenhuma atitude terapêutica”, disse, acrescentando que alguns estudos têm mostrado que o dano é bem maior quando se afasta o indivíduo da comunidade. 

Segundo o médico com a desculpa de “declarar guerra às drogas”, a sociedade declara guerra às pessoas que usam. Segundo ele, é um problema difícil, complexo que não vai acabar a curto prazo e que é preciso buscar e aprender ações para minimizar, prevenir e reduzir danos, sem recorrer ao aprisionamento do sujeito. Creder ressaltou que não há estudos que mostrem que o acolhimento em comunidades terapêuticas tenha mais eficácia do que o tratamento comunitário; que não deve haver uma regra absoluta; que a  internação deve ser exceção e por poucos dias para desintoxicação. Ele lembrou, ainda, que as comunidade terapêuticas surgiram para que pessoas vivendo a mesma situação pudessem se reconhecerem e se ajudarem e não para o confinamento delas. Ele disse, ainda, que nas inspeções das quais participou todas as comunidades terapêuticas apresentara irregularidades bastante significativas de saúde e de violação de direitos humanos, algumas sendo consideradas até piores do que presídios. 

 

Falta de treino leva à “solução” mais simples, a internação

A promotora de Justiça do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Ivana Botelho, agradeceu o convite do MPPB para discutir um assunto instigante que deve ser alvo de reflexão. Ela falou da reforma psiquiátrica e da Lei 10.216/2001, que trata sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência, que antes era pautado na hospitalização, e no  estigma do doente. Ela reconheceu que o problema é complexo, que as pessoas que lidam com os doentes também adoecem, mas pontuou que a sociedade, ao confinar os doentes, desaprendeu ou perdeu a oportunidade de aprender a lidar com a situação. A promotora ressaltou que houve muitas internações desnecessárias, muitas delas por pânico de parentes sem dar autonomia ao sujeito, inclusive o dependente químico, de perceber seu adoecimento e a necessidade de tratamento.

Ivana também ressaltou que a internação involuntária se transformou numa medida de segurança (muito mais do que de saúde) e, para perceber isso, basta observar que as comunidades terapêuticas  ficam em locais de difícil acesso, isolados, fechados. Ela lembrou que não é essa a proposta da reforma psiquiátrica e nem do Ministério da Saúde, que a permanência em comunidades terapêuticas deve ser opcional e não por decisão judicial, principalmente, em se tratando de adolescentes. “Não confinar não quer dizer não fazer nada”, disse, explicando que a internação é uma “solução” mais simples para a família, para os gestores, para a comunidade, para os vizinhos…, porque, de um modo geral, não se tem o treino para lidar com a pessoa que tem o transtorno. Ela pontuou que o Sistema de Justiça tem falhado e que há pessoas se irritando com promotores que não concordaram com a internação compulsória, pois falta a sociedade a compreensão do que seja o tratamento em saúde mental. 

 

“Eu quero entregar meu filho pra Justiça...”

A também promotora de Justiça do MPPE, Jecqueline Elihimas, encerrou as palestras do webinário, destacando os 30 anos do ECA (Lei 8.069/1990), como um marco legal no País, que surgiu em um momento de  efervescência da luta pelos direitos humanos de várias entidades e movimentos e do diálogo com a sociedade organizada. Ao citar que o ECA deu prioridade absoluta às crianças e adolescentes, tratando-os como pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direito, a representante do Ministério Público questionou o fato de que a internação involuntária de adolescentes tem sido usada com o pretexto de ser o melhor interesse do adolescente. “Precisamos refletir muito sobre isso. Quem está ditando, com base em quê estou dizendo que de fato a conduta impositiva é o melhor pra ele?”, perguntou. 

Jecqueline disse que a internação involuntária, muitas vezes, tem sido usada pelas famílias  como uma forma de tirar de sua responsabilidade uma situação que não consegue sustentar. Ela lembrou que a frase “Eu quero entregar meu filho pra Justiça porque não sei mais o que fazer com ele” é bastante usada por pais que se veem sem domínio sobre uma situação, por exemplo, causada pelo uso de drogas ou até mesmo por outros problemas nos quais os adolescentes são apenas partes e não causadores determinantes. Ela ressaltou que as comunidades terapêuticas não fazem parte da rede de saúde e que as internações  só devem ocorrer quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes e que devem ser informadas em até 72 horas ao Ministério Público. A promotora também lembrou que a permanência em comunidades terapêuticas deve ser voluntária e que, na legislação vigente, não há possibilidade de fazer internação hospitalar nesses locais, muito menos de adolescentes. 

A promotora de Justiça destacou que o ECA assegura como direito fundamental o direito à liberdade de ir e vir; de opinião e expressão; de crença e culto religioso; de participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação… e que as internações em comunidades terapêuticas violam essa liberdade. Ela lembrou, ainda, que o uso, mesmo abusivo, de entorpecentes não é ato infracional e que a segregação e institucionalização é uma lógica contrária à legislação contemporânea. “Tirar da vista, internar, infelizmente,  tem sido a solução mágica, imediatista e, muitas vezes, fora das regras legais, sob o pretexto que é para o interesse superior da criança”, disse afirmando que a internação compulsória de adolescentes é ilegal e inconstitucional; que cada caso deve ser analisado, mas que as medidas protetivas devem ter o consentimento dos adolescentes acima de 12 anos de idade, em audiência. 

 

Algemadas, amarradas e dopadas

Ela também citou o relatório de uma inspeção nacional ocorrida em 2017 em todas as regiões do País, inclusive na Paraíba, que mostrou que a maioria das internações eram compulsórias, com contenção física ou química, com pessoas sendo algemada, amarradas e dopadas e sendo submetidas a trabalhos forçados. Jecqueline orientou aos promotores de Justiça que promovam fiscalizações com a participação de profissionais das áreas envolvidas e que, ao identificar internações de crianças e adolescentes, façam a retirada delas desses locais, porque não há sustentação teórica e jurídica que apoiem a internação compulsória. 

A debatedora Iaciara Mendes disse que foi muito contemplada com as falas dos palestrantes  e ressaltou sua preocupação em relação a internações de adolescentes, afirmando que essa experiência é levada para a fase adulta como um estigma. Segundo ela, a primeira internação vai ser sempre usada como argumento para se fazer novas internações. “A frase ‘ele já foi internado’ é usado contra ele durante toda a sua vida. O adolescente é retirado do convívio da sociedade, da escola, tem todos os direitos básicos retirados e isso ainda vai ser sempre usado contra ele”, ressaltou, passando a mediar as perguntas feitas pelos participantes, que elogiaram o debate e a importância da temática. “Se por um lado, a pandemia nos trouxe o desconforto do isolamento social, por outro, nos brinda com várias palestras que nos trazem conhecimentos excelentes e especiais como este. Parabéns”, disse o procurador de Justiça, José Roseno Neto​, um dos participantes. 

CONTATOS

 

Telefone: (83) 2107-6000
Sede: Rua Rodrigues de Aquino, s/n, Centro, João Pessoa. CEP:58013-030.
Contatos das unidades do MPPB 

 

 

 

 

 

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